Sobre a tristeza molhada de Susana e a indiferença seca de Waldemar; a assinatura do decorador; a questão das dobragens e dos desencontros que causam; de como Susana me traiu e porque decidi eu assistir a tudo em vez de manter a televisão desligada.
Susana chorava. Chorava desenfreadamente. Que nem uma doida. Um rio de lágrimas sulcado em cada face. Da nascente dos olhos até à foz da boca, do queixo, do pescoço e da gola da camisa. E não parava de chorar, empenhada em regar a tristeza: podia adivinhar uma poça de água salgada a crescer-lhe aos pés. Apenas lhe via o rosto. Encharcado: os dois rios de lágrimas a galgarem as margens e a insinuarem-se mar muito antes da foz.
Eis Waldemar. Olhos secos. Eis novamente Susana, olhos molhados. A chorar. Chorando. Lágrima a parir lágrimas, puta que a pariu. Waldemar sai do apartamento – moderno. Decorado por um profissional. Assinado – e Susana cai prostrada no sofá azul de desenho italiano ao ouvir a porta bater. «Waldemar, não me abandone»: lábios desencontrados das palavras. Palavras que precedem mais um ror de lágrimas: setenta por cento de nós é água e Susana já deve ter jorrado metade de si para o chão: haverá um lago de pranto aos seus pés, a ameaçar-lhe os tornozelos.
Waldemar voltou. Susana levantou-se assombrada e suspendeu as lágrimas: «Waldemar?» Apenas se tinha esquecido do casaco. Demorou-se pouco. Saiu logo a seguir. E Susana caiu prostrada mais uma vez no sofá azul, corrigindo os erros da prostração anterior – o sofá é de desenho italiano e deve sempre aperfeiçoar-se a forma de se cair prostrado nele. Susana agora chorava a dobrar. Eram as lágrimas do costume mais aquelas que estatisticamente calcula que teria chorado se não as tivesse suspendido. «Waldemar, não me abandone». Lábios drasticamente desencontrados das palavras. Consertou a jarra na mesinha de vidro ao lado do sofá. Azul. Sempre a chorar. O desenho era italiano. Do sofá. O da jarra não. A decoração do apartamento moderno era assinada e a jarra fora do sítio estragava o efeito pretendido. Susana coordena bem o movimento dos membros superiores com o choro: conseguiu repor a jarra no sítio sem negligenciar uma única lágrima. Com os membros inferiores não sei, só vendo-a dançar e chorar ao mesmo tempo.
Waldemar voltou outra vez. Susana levantou-se mas não suspendeu o choro. Deu por feliz a precaução: Waldemar apenas se tinha esquecido das chaves do carro. Filho da mãe. Parecia estar a gozar com a pobre rapariga. «Canalha», Susana de lábios desencontrados da palavra. Eu compassivo e irritado, «pára de chorar e faz qualquer coisa»: os meus lábios firmes com as minhas palavras. E Susana parecia ter ouvido. Não parou de chorar mas agarrou na jarra recém-concertada da mesinha de vidro e mandou-a contra Waldemar. Falhou por muito. Waldemar saiu ileso e Susana caiu prostrada no sofá azul – a execução do movimento foi agora quase perfeita.
O apartamento estava desfigurado. A jarra partira-se e a decoração perdera o sentido. A jarra não era de desenho italiano. A mesinha de vidro, vazia, e os cacos da jarra no chão – ainda por cima tão perto do hall, uma zona chave na harmonização do espaço –, gritavam obscenidades estéticas e borravam a assinatura do decorador. Coitado do decorador. Susana espremia a cara. O caudal de lágrimas aumentava e eu nunca vira ninguém chorar tanto e tanto tempo seguido: aposto num mar de lágrimas já a ondular-lhe aos pés, a ameaçar-lhe os joelhos.
Queria ir ter com ela. Desencontrar os meus lábios das minhas palavras e sentar-me dignamente no sofá. O desenho italiano e eu abraçado a ela a chapinhar-lhe no rosto com a ponta dos dedos. Beijar-lhe a testa. Descer daí seguindo-lhe os dois rios tristes até desaguar com eles na foz da boca – ficarmos assombrados com aquele beijo, por termos aberto uma porta e descobrirmos paixão onde julgávamos haver apenas amizade: nestas histórias usa-se muito.
Dias depois Susana estava numa esplanada a tomar um suco de jubacubá. Olhos secos. Estranhos. Waldemar vinha do outro lado da rua e atravessou para ela. «Como está, Susana?»: pude verificar a relação entre os lábios de Waldemar e as suas palavras. Desencontrados. Já suspeitava. Susana levantou os olhos do seu suco de xiemanjoca até aos olhos de Waldemar. Desejei que lho despejasse na cara. «Bem, e você?». Waldemar sentou-se. Falaram: um mar de desencontros – lábios e palavras – tão vasto como os mares chorados outrora por Susana. Falaram mais. Calaram-se. Susana beberricou mais um pouco do seu suco de quiriquiqui. Os olhos de ambos tocaram-se e o meu coração inquietou-se. Beijaram-se. As línguas embrulhadas: senti-me traído e desliguei a televisão.
Da penumbra silenciosa que se fez comecei a ouvir a solidão que escorre há muito das paredes da sala: um murmurinho primeiro, crescente, até se tornar numa chiadeira de unhas em quadro de ardósia à medida que os meus ouvidos se iam acostumando ao silêncio. Liguei a televisão para a calar: Susana fazia amor: gemidos dessincronizados com as investidas de Waldemar.
António Gregório
Uma história de desamor treze vezes

Janaschi
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