por Catarina Barros
Para que isto fosse uma crítica era preciso que eu aqui juntasse uma ou outra citação (julgo que é assim que os críticos procedem), coisa que não poderei fazer porque, assim que terminei o livro, fui guardá-lo na estante. Arquivá-lo. Enterrá-lo. Livre de enquadramentos, o meu texto rompe as águas. Descanse desde já o chatíssimo leitor: se no fim algum algarismo houvesse, seria apenas o do tempo que o texto, depois de parido, levou até berrar. [Como é que se faz, quando um texto é mudo?] A biografia de Clarice Lispector é uma violência, um atentado. Não sei se aquilo foi concebido para ser lido de uma vez ou se, como a maioria dos livros com mais de setecentas páginas, para ser comprado e arrumado por cima da televisão. Aquilo de que vos posso assegurar é de que é um caminho sem retorno. Clarice Lispector toma conta de tudo e, enquanto a leitura durar, em qualquer situação do quotidiano vai começar a ouvir-se «sabes que a Clarice Lispector disse...?». Não posso ainda dar-vos conta da duração destes efeitos, mas tentarei manter um registo actualizado dos sintomas. Primeiro Clarice esmaga porque é brilhante. Depois, porque é bela. Logo a seguir, porque sofre de uma solidão que apetece salvar. Esmaga porque é infeliz e porque não pode parar. E esmaga porque pensa como só ela pensa e escreve como só ela escreve. Estar aqui a reunir estas breves notas é já uma humilhação - não há nada a dizer, nada. E uma pessoa sente-se ingénua, ao tentar falar sobre isto. Note-se que, da última vez que senti qualquer coisa parecida com isto foi com A Montanha Mágica e (o Benjamin Moser que me perdoe) estamos a falar de um Thomas Mann. A sensação era qualquer coisa assim: um sufoco, um aperto constante, uma vontade de fechar as portadas, de adormecer. Ora, o que aqui se passa é que na Montanha Mágica terá eventualmente havido uma coisa chamada génio que soube trabalhar o tempo (de narração, de leitura) com uma mestria para mim inaugural, mas na biografia de Lispector é como se a própria biografada contaminasse o tempo, isto é, é como se, ao invés do autor, fosse o objecto tratado, a personagem, a dominar a obra. [além de chata é maluca, ouvi alguém dizer aí ao fundo]
Bem sei que devia ter sublinhado, tirado notas, que devia guardar o livro num ponto de fácil acesso, fazendo dele uma bíblia circunstancial - sobretudo agora que a A. levou os pauzinhos da fortuna que a mãe lhe trouxe da China. É só que não posso, que não sou capaz, tenho medo. É que, ao longo de três semanas, eu já não era eu. Eu era qualquer coisa em português do Brasil, formada em rede globo, em ambiente outro. É que Clarice tem o poder de nos fazer sentir iguaizinhos a ela. Mas não somos.
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